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O que há do Dr. Bacamarte em você?

17/05/2017
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O que há do Dr. Bacamarte em você?
 Dr. Simão Bacamarte é um bem-sucedido médico da pacata Itaguaí, onde empreende esforços para entender e tratar os casos de loucura. Para tal, cria o Manicômio Casa Verde, com objetivo de abrigar todos os loucos da cidade e da região. O local em pouco tempo fica cheio, somando-se aos casos de loucura os de desviantes sociais, pouco adaptados aos padrões esperados pela comunidade. Após 75% dos munícipes serem internados, Dr. Bacamarte revê sua teoria acerca da normalidade e da loucura: se a maioria das pessoas apresentava desvios e não seguia padrões de personalidade, o anormal passava a ser quem apresentava um modo “perfeito” de estar no mundo. Ou seja, ele. Assim, dá alta para todos os pacientes e se interna no manicômio, pelo resto da vida.

O conto “O Alienista”, publicado em 1882 pelo visionário Machado de Assis, permanece atual e provocativo para pensarmos nossa relação com a loucura e com a diferença, nos dias atuais.
Há 30 anos o dia 18 de maio tem sido marcado pela comemoração da Luta Antimanicomial, data em que se reconhecem avanços na constituição de uma Política Pública de Saúde Mental, com redução dos leitos em Hospitais Psiquiátricos e ampliação da rede comunitária de serviços (CAPS, cuidados nas Unidades Básicas de Saúde, Consultório na Rua, Centros de Convivência, etc...), o que está em consonância com experiências e estudos nacionais e internacionais que versam sobre a maior qualidade da assistência e melhora no bem-estar das pessoas quando cuidadas em seus territórios.
Ao mesmo tempo, a data nos remete a desafios que permanecem, como a necessidade de ampliação da quantidade e qualidade dos serviços, de formação de trabalhadores para atuarem na nova lógica proposta, da garantia do exercício de cidadania e dos direitos dos pacientes, do fortalecimento do Sistema Único de Saúde frente às políticas neoliberais e individualistas adotadas por diferentes instâncias governamentais.

A manutenção de espaços de exclusão encarna-se na existência de Hospitais Psiquiátricos como lócus de depósito e controle da loucura, porém não encerra a metáfora da segregação da diferença, que pode ser dar de formas mais veladas no nosso cotidiano, sem que muitas vezes a percebamos.
A loucura deve deixar de ser vista como uma entidade que se apossa do sujeito e o controla, passando a ser concebida como uma dimensão da vida humana, que se encontra na relação entre as pessoas, a partir da existência e sofrimento de todos nós. Para além do medo da novidade que o outro traz, tememos o desconhecido que habita o que conhecemos. Do pedaço de nós que também é loucura, ou que pode fugir do controle, ou que pode eclodir em crises que venhamos a enfrentar pela vida ou em uso problemático de substâncias.

O posicionamento político frente a esta temática não cabe apenas a governantes, profissionais de saúde ou usuários da saúde mental. Todos compomos a política de construção de cidades, de relações mais ou menos salvaguardadas pelos direitos humanos, de diminuição ou aumento das desigualdades sociais e de acesso a direitos, de reprodução ou superação do estigma em relação ao dito louco.
Negar o que nos cabe nessa história é negar a defesa social constituída frente ao que não damos conta em nós mesmos. Se algo torna-se impossível de ser tolerado numa relação ou convivência, possivelmente muito de nós ali está denunciado, depositado no outro.
No almoço entre amigos, no café da firma, no vidro fechado frente a uma pessoa em situação de rua, na chacota em relação a quem é diferente, na defesa de um único modo de amar ou de compor família...o que há do Dr. Bacamarte em você?

Bruno Ferrari Emerich - professor do Curso de Psicologia da Universidade São Francisco e Doutor em Saúde Coletiva e supervisor da Residência Multiprofissional em Saúde Mental (UNICAMP).







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